terça-feira, 27 de março de 2012

O escritor italiano que entrou em Lisboa pela "tabacaria"

Conheceu Portugal por causa de Fernando Pessoa; adoptou como seu um país que conhece como poucos; é um grande escritor europeu que aqui vive e aqui se inspira.

Num certo Verão, em meados dos anos 60, um jovem italiano de férias em Paris compra num bouquiniste um livrinho intitulado Le Bureau de Tabac. Autor: Fernando Pessoa. A leitura desse longo poema (que era, afinal, de Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa), na tradução de Pierre Hourcade, mudaria para sempre a vida do jovem Antonio Tabucchi. E esse simples gesto tornou-se ele próprio digno de lenda, uma vez que, noutras versões, terá comprado o livro na Gare de Lyon, antes de apanhar o comboio de regresso à Toscana natal. Seja como for, o fascínio que sobre o então estudante de filosofia exerceu A Tabacaria levou-o a estudar português para entender melhor a língua desse "desconhecido e curioso" poeta.

"Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Os primeiros versos do poema de Álvaro de Campos ficaram a martelar-lhe na cabeça até que se decidiu: veio pela primeira vez a Lisboa num velho Fiat 500, atravessando estradas quase intransitáveis. Fez amigos e começou a conhecer melhor uma cultura a que se manteria ligado até hoje. De tal forma que, em 1969, quando terminou o curso em Pisa (cidade onde nascera em 1943) o fez defendendo uma tese sobre "o surrealismo em Portugal".

Uma das moradas de Lisboa que trazia era a de Alexandre O'Neill. Contou mais tarde que, quando abriu a porta, o poeta lhe perguntou: "Gostas de sardinhas decapitadas?" Perante o espanto do jovem italiano, o autor de Abandono Vigiado oferece-lhe sardinhas em lata. Ficaram amigos para sempre e, em 1971, Tabucchi seria testemunha do casamento de O'Neill com Teresa Gouveia.

Por essa altura, já tinha sido investigador na Escola Normal Superior de Pisa e preparava-se para ensinar Língua e Literatura portuguesas em Bolonha. Ainda em Pisa, num Verão invulgarmente quente, com a mulher grávida (a portuguesa Maria José de Lancastre, professora e divulgadora da cultura portuguesa em Itália), pôs-se a escrever um romance. Saiu-lhe Piazza de Italia, um dos poucos livros dele ainda não traduzidos em português. Seguiram-se obras hoje clássicas, como Jogo do Reverso, Pequenos Equívocos sem Importância, Nocturno Indiano (Prémio Medicis),O Fio do Horizonte. A sua ligação a Portugal deu-lhe ainda matéria para livros como A Mulher de Porto Pim, Afirma Pereira (o mais premiado) ou A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro. Com os dois últimos não só se afirmou como um dos mais respeitados nomes da literatura europeia contemporânea como interveio no debate de ideias sobre a evolução da sociedade, a começar pelo caso italiano.

Em 2004, candidatou-se ao Parlamento Europeu pela lista do Bloco de Esquerda. Afirmou então, em entrevista ao DN, que o fazia "para dar testemunho" num momento em que nos arriscávamos "a perder os princípios do Estado de direito". Criticava a invasão do Iraque e, em geral, os métodos da Administração Bush para combater o terrorismo. Manteve uma polémica com Umberto Eco sobre o papel dos intelectuais na actual crise. Que devem fazer os intelectuais quando uma casa arde? Chamar os bombeiros, disse Eco. Sim, acrescentou Tabucchi, mas sobretudo procurar saber as causas do incêndio, para que não se repita. Em Itália, combate o sistema Berlusconi, o "grau zero da política"; em Portugal, onde passa vários meses por ano, agora que está reformado do ensino, pensa, age e, felizmente, continua a escrever, acrescentando sempre um ponto ao velho conto-poema de Álvaro de Campos: "À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

(artigo de Albano Matos, publicado no site do Diário de Notícias em 9 de Julho de 2011)

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